Eu nasci há muito, muito tempo... No tempo em que criança tinha infância.
A existência física, de alguma forma, dependia muito da imaginação.
A criança feliz não era aquela que tinha tudo, mas a que sabia ser ditosa mesmo sem ter muita coisa, podendo imaginar possuir e transformar velho ferro de engomar em um automóvel, caminhão ou mesmo numa locomotiva.
As bolas de gude davam à imaginação um poder incrível. Os meninos preferiam uma bola, não importava que fosse de borracha ou de pano, e as meninas ficavam felizes com bonecas de louça, celuloide ou bruxas de pano também.
O São João era uma data especial muito esperada. Separava-se lenha para as fogueiras, cuidava-se de decorar os lares com bandeirinhas coloridas e flores feitas em papel crepom.
Os licores de jenipapo e outros frutos, todos feitos em casa, faziam parte do cardápio, com as comidas feitas do milho verde assado, cozido e canjica; saltar as brasas das fogueiras; lutas de espadas, meu Deus, mil divertimentos, incluindo os casamentos entre os moradores das roças, o compadrio e mil lindezas...
Devagar, os balões foram desaparecendo por serem perigosos às indústrias, às casas, aos pastos...
Depois, as pequenas ruas transformaram-se em avenidas, e já não se tinha onde construir as fogueiras. Chegaram os rádios e televisões, espetáculos nas grandes cidades transmitidos para toda parte.
As quadrilhas dançadas e cantadas em francês horrível tornaram-se disputas de grupos e, muito chiques, perderam o sentido inicial...
O que não se tinha a imaginação supria, e o mundo era lugar maravilhoso com as férias escolares que não acabavam nunca... Tudo era ocorrência do capricho do tempo e da fantasia.
Logo depois começaram a chegar brinquedos importados, acessíveis somente aos ricos, que os menos afortunados copiavam com o material que conseguiam.
Novos métodos pedagógicos tomaram conta da educação, mas os lares continuaram com as mesmas condições tradicionais ou perderam-se no conceito de liberdade....
Exigências surgiram na educação, e a infância foi desaparecendo, substituída pela formação da personalidade apta a viver em um mundo de negócios, de prazeres, de poder, de traições e ausência de afetividade.
Não sei bem dizer se foi o mundo que mudou ou se fomos nós, os adultos, que destruímos a infância e sua ingenuidade, precipitando-lhes o desenvolvimento moral, antes de aprenderem ética e costumes saudáveis.
Estamos nos momentos de celebração do São João, e são as tragédias que se movimentam e se comentam: suicídios, acidentes, crimes, medos da pandemia e das sequelas da doença voraz.
Será que ainda voltaremos a ver crianças brincando na sua infância?
Façamos a nossa parte, amando-as e ajudando-as a manter-se nobres.
Divaldo Pereira Franco
Artigo publicado no jornal A Tarde (Bahia),
coluna Opinião, em 24.6.2021.